Ao final de uma reunião em Salvador, me deparei com uma cena que revela muito sobre os desafios sociais e econômicos do nosso tempo. Após estacionar o carro no centro da capital baiana, fui abordado por um guardador, um baiano típico, com aquele jeito descontraído e as gírias características do nosso povo. Ele usava um colete refletivo laranja e segurava um celular. Até aí, nada fora do comum. Mas ao solicitar o pagamento de R$ 20,00, ele me surpreendeu ao dizer: “No QR Code, meu patrão.”
Tirei meu celular para realizar o pagamento enquanto ele gerava o código na tela do aparelho dele. Foi então que percebi algo estranho: o aplicativo usado não era de uma instituição financeira. Um banner publicitário apareceu rapidamente, e logo em seguida surgiu o QR Code. Foi quando me dei conta de que ele estava usando um aplicativo de apostas, conhecido como “jogo do tigrinho”, para cobrar o valor. Contrariado, acabei realizando o pagamento, mas a situação me deixou reflexivo.
Essa experiência mostra como as apostas digitais, disfarçadas de oportunidade de ganho fácil, estão se tornando parte do cotidiano. É preocupante que, mesmo pessoas em situações de vulnerabilidade, como o guardador de carros, acabem imersas nesse ciclo viciante. Segundo especialistas, o “jogo do tigrinho” é estruturado para atrair o jogador com promessas ilusórias. O professor Ivan Mussa, da Universidade Federal da Paraíba, explica que esses jogos utilizam algoritmos e estímulos visuais para gerar a sensação de que o prêmio está sempre próximo, incentivando o usuário a continuar apostando.
Além disso, os influenciadores digitais têm um papel significativo nesse cenário. Muitos promovem plataformas de apostas como se fossem caminhos legítimos e simples para ganhar dinheiro, omitindo os riscos e os prejuízos que podem surgir. Para agravar a situação, os idealizadores desses jogos criam campanhas publicitárias que reforçam a falsa ideia de que a sorte está ao alcance de todos, quando, na realidade, as perdas são certas para a maioria dos participantes.
Esse vício, que muitas vezes começa de forma despretensiosa, pode ter impactos devastadores. Estudos mostram que a compulsão por jogos de azar gera consequências tão graves quanto as das dependências químicas. Em muitos casos, é mais severa do que outros tipos de vícios, como a compulsão alimentar ou sexual. Isso ocorre porque a promessa de ganho financeiro ativa áreas do cérebro ligadas à recompensa, criando um desejo incontrolável de apostar novamente.
Recentemente, o caso do filho da cantora Simone Mendes, que usou o cartão do pai para comprar créditos para jogos online, chamou atenção. Embora não estivesse relacionado ao “jogo do tigrinho”, o episódio exemplifica como o acesso desenfreado a aplicativos de jogos pode gerar prejuízos financeiros e emocionais, afetando famílias inteiras.
O que ocorreu em Salvador é apenas a ponta do iceberg de um problema muito maior. O “jogo do tigrinho”, classificado como jogo de azar pela Lei das Contravenções Penais, não é apenas uma atividade inofensiva. Ele representa um risco à saúde mental, ao equilíbrio financeiro das famílias e à segurança pública. É urgente que a sociedade e as autoridades tratem essa questão com a seriedade que ela exige. Afinal, o que está em jogo não é apenas o dinheiro perdido, mas também a dignidade e a estabilidade de milhares de pessoas.
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