O episódio envolvendo a votação das contas dos exercícios financeiros da Prefeitura de Cruz das Almas evidencia o casuísmo que permeia o julgamento de contas de prefeitos pelas Câmaras Municipais, além de revelar um cenário de descompasso entre aspectos técnicos e políticos.
A Constituição Federal estabelece que as contas políticas devem ser julgadas pelo Congresso Nacional, enquanto as contas técnicas são responsabilidade do Tribunal de Contas da União. Por simetria, a mesma lógica foi aplicada a estados e municípios, criando um sistema híbrido para análise das contas públicas.
No entanto, em 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o parecer técnico emitido pelos tribunais de contas tem caráter opinativo, cabendo às Câmaras Municipais o julgamento final das contas anuais dos prefeitos. Em 2019, essa interpretação foi reafirmada, consolidando a autonomia política das Câmaras sobre as decisões técnicas.
Essa mudança ampliou o componente político nos julgamentos, deixando prefeitos e ex-prefeitos sujeitos às circunstâncias do momento. Na prática, a rejeição de um parecer técnico pelo legislativo local exige o apoio de dois terços dos vereadores — um número que, em muitas cidades, não é difícil de alcançar, considerando a proximidade entre prefeitos e parlamentares.
O impacto da conjuntura política
Essa dinâmica permite que prefeitos que não tenham cometido irregularidades graves tenham suas contas rejeitadas por razões políticas. Por outro lado, é possível que contas tecnicamente irregulares sejam aprovadas devido a alianças no legislativo.
Nos últimos anos, têm sido cada vez mais comuns decisões das Câmaras Municipais que contrariam pareceres técnicos, seja aprovando contas com irregularidades, seja rejeitando-as por motivações políticas. Essa prática reforça um cenário de incertezas e desconfiança em relação à gestão pública.
No caso das contas do ex-prefeito Orlandinho, a rejeição não afetou sua elegibilidade. O parecer técnico do Tribunal de Contas dos Municípios da Bahia não identificou atos que configurassem prejuízo ao erário ou enriquecimento ilícito, fatores que poderiam tornar o ex-gestor inelegível.
Ainda assim, há um agravante: em algumas cidades, as Câmaras sequer apreciam as contas dos gestores, o que mantém os políticos elegíveis, mesmo em casos de rejeição técnica. A Justiça Eleitoral entende que, sem um julgamento formal pela Câmara, não há uma decisão definitiva.
Relações familiares e contradições
Outro aspecto relevante nesse contexto é a postura de atores políticos com vínculos familiares e históricos que influenciam as decisões. Um exemplo é o vereador Ximba, cujo irmão, Renero, ocupou o cargo de secretário de Administração durante o governo Orlandinho (2017-2020). Beneficiado por esse vínculo, Ximba conquistou seu primeiro mandato em 2020 e, desde então, tem se aliado ao atual governo municipal, contradizendo suas posições políticas anteriores.
Já o presidente da Câmara, Thiago Chagas, adotou uma postura controversa durante o julgamento. Em declaração pública, afirmou: “Infelizmente ou felizmente eu não tenho que opinar…”, referindo-se ao fato de que só votaria em caso de empate. Contudo, o histórico familiar do presidente não passou despercebido. Seu pai, Mário Araújo, foi ordenador de despesas da Secretaria de Educação no período em análise, sendo responsável por contratações que contribuíram para o aumento da folha de pagamento e para a extrapolação do limite de despesas com pessoal, um dos fatores determinantes para a rejeição das contas.
A comparação de Thiago Chagas à figura histórica de Pôncio Pilatos, que “lavou as mãos” diante de uma decisão controversa, ilustra bem o sentimento de indignação de muitos observadores diante da omissão do presidente.
A reação do ex-prefeito
Além dos embates na Câmara, chama atenção a postura de aliados e adversários do ex-prefeito Orlandinho, especialmente os Irmãos Ribeiros, que, mesmo após uma vitória eleitoral expressiva, continuam atacando ferozmente o grupo político adversário.
Em contato com o JornalZero75, Orlandinho reafirmou sua posição política: “Independentemente de ser ou não candidato, não vou me despedir da política. Continuarei militando no PT e colaborando com o grupo político de oposição.”
Reflexões finais
O caso das contas de Orlandinho expõe, mais uma vez, os desafios do modelo híbrido de julgamento de contas no Brasil. Entre interesses políticos e pareceres técnicos, a democracia municipal é constantemente colocada à prova, revelando a urgência de uma discussão mais ampla sobre os critérios e os limites dessa dinâmica.
Com tantas nuances e interesses em jogo, o episódio em Cruz das Almas não é apenas um caso isolado, mas um reflexo de como a política local pode interferir diretamente na percepção de justiça e transparência na administração pública.
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